Escritor, considerado o “papa” da ficção científica, Isaac Asimov, já dizia que “se o conhecimento pode criar problemas, não é por meio da ignorância que podemos solucioná-los”. Começo este artigo levando o leitor a refletir, não apenas para as situações em que ele se vê envolvido, mas para as diretrizes do trabalho que impactam a todos.

A atualização relacionada à NR-1, que define as responsabilidades da saúde no trabalho tanto do empregador quanto do empregado, introduz regulamentação dos processos de gestão relacionados aos riscos psicossociais. Importante dizer que esses mesmos riscos são oriundos exclusivamente da organização do trabalho, e todos. comprovadamente, geram lesões ocupacionais, seja de cunho mental ou de qualquer outro tipo, por falha na organização do processo produtivo como um todo.

A norma chega atrasada em relação às mais avançadas do mundo – foi o Reino Unido que implementou as primeiras normativas de gestão de estresse organizacional, em 1984. No entanto, a economia brasileira também fica para trás em relação a atores emergentes como Colômbia, que levou a cabo a implementação de normas de gestão de estresse organizacional em 2012, seguida pelo México em 2017.

Segundo o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), no estudo intitulado “Janeiro Branco na Saúde Suplementar – Panorama da saúde mental entre beneficiários de planos de saúde” , “os custos com procedimentos em psicoterapia passaram, entre 2018 e 2022, de R$ 181 milhões para R$ 269 milhões”, valor que tem se tornado cada vez impactante na administração dos planos de saúde e que acaba sendo repassado aos tomadores de serviços, como a indústria ou aos próprios usuários do planos.

Por fim, falta esclarecer como a chamada inflação médica influencia a inflação real, uma vez que as despesas com saúde suplementar já estão entre os maiores gastos de RH, perdendo apenas para a própria folha de pagamento. Não bastasse a carga sobre a iniciativa privada em um país que se orgulha tanto de seu sistema único de saúde, o SUS, não podemos desconsiderar o impacto das doenças mentais e ocupacionais sobre o próprio INSS.

Em 2024, o Brasil amargou um aumento de 68% nos afastamentos previdenciários relacionados às doenças mentais, representando 472.328 afastamentos em um ano. Em termos comparativos, esse número é maior do que a população economicamente ativa de países como Montenegro, por exemplo.

No entanto, apesar de tudo isso, a nova NR-1 tem detratores.

Por que implementar uma norma com foco em riscos psicossociais – mesmo com atraso

A resposta a essa pergunta é: “para beneficiar funcionários e empregadores”. É o que diria qualquer pessoa minimamente versada em dados relacionados à economia brasileira menos os defensores do atraso da norma. Na melhor das hipóteses, esses detratores parecem estar profundamente desinformados sobre a realidade ocupacional e econômica brasileira no tocante às perdas financeiras relacionadas às doenças mentais e seus impactos organizacionais. Ou se trata de puro ato de desonestidade intelectual, já que os dados sobre o assunto são elementares e públicos.

Caso os atores envolvidos na perpetuação dos atrasos não consigam debruçar-se sobre o tema com a atenção que ele merece, alguns dados simplificados de maneira elementar poderiam elucidar a simplicidade urgente da questão. Do ponto de vista regulatório, cabe notar que, apesar da questionável transparência em relação ao início da vigência da NR-1, ações civis públicas sobre questões relacionadas a riscos psicossociais já têm sido aplicadas desde 2015 com foco na NR-17, que já regulava de maneira esparsa a questão da necessidade de gestão do risco psicossocial. E esta foi atualizada em 2021 .

Tem mais. Em 2023, o ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino decidiu que os valores de condenações em ações civis trabalhistas sejam direcionados a fundos públicos, sendo eles o Fundo dos Direitos Difusos (FDD) e ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Segundo a decisão, os conselhos dos respectivos fundos deverão, ao aplicarem os recursos, ouvir o Tribunal Superior do Trabalho, a Procuradoria Geral do Trabalho e o Ministério do Trabalho e Emprego , sendo o MTE o responsável pela administração, aplicação e fiscalização das normas regulamentadoras do trabalho como a própria NR-1.

Sim, a NR-17 já regulava de algum modo a gestão do risco psicossocial, mas com a introdução da nova NR-1 é que são estabelecidas as regras do jogo, uma vez que entram em vigência, com sua atualização, as medidas de controle do risco, mensuração, governança, bem como os critérios de reconhecimento de nexo ocupacional entre doenças mentais e ambiente de trabalho.

Esses critérios beneficiam as empresas, que passam a ter critérios mais claros sobre o que, e como, fazer para administração do risco. E beneficiam os funcionários, que passam a trabalhar em um ambiente mais controlado. Métodos e processos de gestão desses riscos já são amplamente divulgados desde 1975 pela National Institute for Occupational Safety and Health (NIOSH), agência federal de segurança e saúde ocupacional dos Estados Unidos, e foram amplificados pela certificação ISO 45003, publicada em 2021, que estabeleceu padrões internacionais de para a gestão de saúde mental no trabalho.

O possível adiamento da norma faz com que o governo perca milhões com afastamentos evitáveis e com que as empresas percam em custas astronômicas em planos de saúde, sem falar nas perdas com ações trabalhistas e no absenteísmo. E, por fim, o trabalhador brasileiro é exposto e tem sua saúde mental afetada.

Encerro com Chico Buarque na analogia: “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”.

*Dr. Glauco Callia é CEO e fundador do Zenith, plataforma de governança em saúde mental. Médico corporativo, com passagem por multinacionais globais como GSK e Caterpillar, tem especialização em arquitetura de programas de inteligência artificial pelo MIT.

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